Chefe de Inteligência da Otan fez um recente alerta sobre a possibilidade de a Rússia utilizar equipamentos para sabotar cabos submarinos que conectam países em rede de internet
Presidente russo Vladimir Putin a bordo de veículo submersível em julho de 2019, em Moscou.Mikhail Svetlov/Getty Images
Desde a fatalidade envolvendo a implosão da expedição da OceanGate aos destroços do Titanic, o mundo nunca esteve tão interessado em discussões envolvendo veículos submersíveis, como apontam os dados de pesquisa do Google.
Recentemente, no contexto da guerra da Ucrânia, o chefe de Inteligência da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) fez um alerta sobre a possibilidade de a Rússia utilizar submersíveis para sabotar cabos submarinos que conectam países em rede de internet –o que seria uma retaliação às nações que apoiam os ucranianos.
David Cattler, secretário-geral para inteligência e segurança da aliança militar, disse que existe um risco “persistente e significativo” de ataques da Rússia contra esse tipo de infraestrutura.
“Existem preocupações crescentes de que a Rússia possa atacar cabos submarinos e outras infraestruturas críticas em um esforço para perturbar a vida ocidental, para ganhar vantagem contra as nações que estão fornecendo segurança à Ucrânia”, declarou.
“Os russos estão mais ativos neste domínio do que vimos em anos. No total, [os cabos submarinos] carregam cerca de 10 trilhões de dólares americanos em transações financeiras todos os dias, então eles são realmente um pivô econômico”, acrescentou.
Essas declarações reacenderam uma discussão do Ocidente de décadas sobre qual o impacto que os russos poderiam provocar na internet global. Afinal, a nação de Vladimir Putin poderia simplesmente cortar o acesso de países à internet usando submersíveis? A CNN explica abaixo.
A importância dos cabos submarinos
Os cabos submarinos são a força invisível que sustentam a internet moderna como a conhecemos –sendo muitas vezes, nos últimos anos, financiados por big techs como Meta, Google, Microsoft e Amazon. Em um mundo de conexão sem fio e smartphones, esses cabos carregam quase todas nossas comunicações, mesmo que mal tenhamos consciência de que eles existam.
“Geralmente temos uma percepção da internet como algo invisível, que viaja pelo ar, mas todo esse fluxo de internet, de dados, viaja pelo planeta em 98% das vezes via cabos submarinos. Esses cabos submarinos são o esqueleto físico, a infraestrutura principal que a internet reside para que essas informações sejam trafegadas”, explica Victor Veloso, mestre em Relações Internacionais pela USP, à CNN.
“Esses cabos geralmente estão concentrados nas costas leste e oeste dos EUA, na China, passando também pelo Japão, e, mais recentemente, na Europa. A Europa começou a ter um protagonismo maior com países como a Holanda, a França e Alemanha cada vez mais aumentando sua influência dentro dessa intrincada malha de transmissão”, completa.
Pesquisador especializado em guerra cibernética, com foco nessas infraestruturas, Veloso conta que esses cabos possuem “a espessura de uma mangueira de jardim, com uma capacidade de transmissão muito maior do que qualquer dispositivo wi-fi, chegando até 200 terabytes por segundo de transmissão”.
De acordo com a empresa de telecomunicações TeleGeography, que monitora constantemente a rede de cabos submarinos ao redor do globo, existem, em junho de 2023, 485 sistemas de cabos submarinos operantes e outros 70 sendo construídos.
Esses números dizem respeito apenas aos cabos responsáveis pela transmissão de dados entre países –excluindo ainda toda uma gama de cabos submarinos que transmitem energia ou que tem uso privado por governos, por exemplo.
O Departamento de Comércio dos Estados Unidos pontua que os cabos submarinos desempenham um “papel crítico”, não apenas intercontectando os estados americanos, mas os EUA com o resto do mundo. “Eles também apoiam empreendimentos críticos de segurança comercial, econômica e nacional, e transportam a maior parte do tráfego de comunicações offshore civis, militares e governamentais”.
No Brasil, a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) afirma que os cabos são utilizados no sistema de telecomunicações nacional desde 1857. Mais recentemente, em junho de 2021, foi inaugurado um cabo que conecta diretamente Brasil e a Europa, com 6.000 quilômetros de extensão, podendo chegar a 5.000 metros de profundidade em alguns pontos.
“Os cabos submarinos têm algumas vantagens em relação aos satélites. Além de serem mais rápidos, são mais baratos. A redução de custos é de cerca de 50%. Quando chove forte ou há furacões, por exemplo, o sinal não é afetado. A capacidade de enviar dados pelo cabo é até 1.000 vezes maior do que pelo satélite. E há ainda um outro ponto positivo. O caminho que o sinal percorre pelo fundo do oceano até chegar ao destino é bem menor que a distância do sinal vindo dos satélites”, pontua a Anatel.
É possível atacar esses cabos?
Sim, mas a questão não é tão simples. O pesquisador Victor Veloso explica que um cabo submarino em si “não é algo fácil de se defender”.
“Você tem que pensar toda a extensão que esse cabo ele percorre ali no assoalho oceânico e entender que um ataque pode vir via submersível, mergulhadores que saem de um barco e vão até o cabo e fisicamente destroem aquilo com uma facilidade tremenda. São ativos frágeis, fáceis de serem destruídos”, afirma.
O especialista em segurança cibernética Rafael Franco contou à CNN que os cabos estão sujeitos a acidentes causados também por fenômenos naturais ou animais marinhos. Âncoras soltas e barcos de pesca também são fatores comuns a episódios envolvendo danos aos cabos.
No entanto, Veloso pontua: “A questão é que a internet funciona com base em um sistema extremamente redundante.” Isso é, caso um cabo submarino seja sabotado, é possível rearranjar a rede para encontrar outra forma dos dados chegarem de um ponto a outro.
“Caso uma rota determinada não seja mais acessível, o protocolo TCPIP tem como primazia readaptar esse fluxo de transmissão de dados”, acrescentou o especialista.
Rafael Franco complementa que pode acontecer uma interrupção temporária ou perda de conectividade nas áreas atendidas pelo cabo afetado, mas as rotas de contingência e planos de recuperação trabalhariam para minimizar impactos.
Os dois especialistas concordam que seria necessário um ataque em massa atingindo simultaneamente uma gama de cabos importantes para criar um impacto real na conectividade.
Ocidente tem histórico de sabotagens
Da mesma forma que o chefe de Inteligência da Otan, David Cattler, chamou a atenção para o risco de um ataque russos contra a infraestrutura de cabos submarinos, o secretário de Defesa do Reino Unido, Ben Wallace, disse que “não há dúvidas de que a Rússia tem a intenção e a capacidade de atingir as linhas subaquáticas”.
Essas declarações estão longe de ser a primeira vez que o Ocidente conjectura sobre um potencial ataque russo contra essas telecomunicações marítimas.
Uma reportagem do “New York Times” publicada em outubro de 2015, por exemplo, citava oficiais da Marinha dos EUA falando da preocupação de navios russos estarem próximos demais de cabos submarinos para o conforto dos americanos – o que colocava em risco “quase todas as comunicações globais de internet”.
A CNN, na época, apurou que o alerta surgiu quando um navio militar russo chamado Yantar cruzou repentinamente o Atlântico e começou a descer a costa leste americana.
No entanto, em termos de exemplos práticos sobre sabotagens a cabos submarinos que já foram praticadas, muitas vezes é o próprio Ocidente quem está por trás.
Nos anos 1970, ainda durante a Guerra Fria, foram os próprios EUA que grampearam linhas de comunicação submarinas da União Soviética no Mar de Okhotsk, no extremo leste russo.
Em uma operação da CIA e da NSA, que ficou conhecida como “Ivy Bells”, mergulhadores acoplaram equipamentos especiais nos cabos soviéticos em um esquema de espionagem que perdurou por quase uma década.
Além das agências americanas, a agência britânica de inteligência GCHQ também possui um histórico de sabotagem a cabos submarinos, como mostraram documentos revelados por Edward Snowden, em 2013.
De acordo com os documentos, reportados pelo jornal “The Guardian”, a GCHQ obteve “secretamente acesso à rede de cabos que transportam chamadas telefônicas do mundo e o tráfego da internet”.
A agência britânica esteve em posse de 600 milhões de “eventos telefônicos” diariamente, comprometendo mais de 200 cabos submarinos de fibra ótica, mostrou Snowden.
A americana NSA fez uma operação semelhante, chamada Upstream, acessando comunicações desses cabos “à medida que os dados passam”.
A ameaça russa e o risco à internet global
A inteligência da Otan ficou mais atenta para uma potencial sabotagem promovida pela Rússia contra os cabos submarinos desde as explosões nos oleodutos Nord Stream, em setembro do ano passado, cuja autoria não foi determinada. Uma reportagem do “Wall Street Journal” chegou a apontar para possibilidade de autoria ucraniana, o que foi negado pelo governo do país.
Após o episódio do Nord Stream, a Otan aumentou significativamente o número de navios patrulando os mares do Norte e Báltico e estabeleceu uma Célula de Proteção de Infraestrutura Submarina Crítica.
“A ameaça é real e a Otan está agindo”, disse o tenente-general alemão Hans-Werner Wiermann, que está no comando da nova célula desde fevereiro.
No entanto, o analista sênior da Telegeography, Jonathan Hjembo, afirma que não apenas os russos não seriam capazes de provocar um colapso global na internet, como dificilmente seria desejável para a própria Rússia.
“Seria detrimental para os russos e não seria particularmente fácil provocar qualquer dano à internet. Como existe uma incrível redundância e resiliência construídas para as redes de internet, cabos ficam fora do ar a toda hora e, se um cabo se perde, muita capacidade pode ser revertida para outro sistema”, disse Hjembo.
“Demandaria um esforço para atacar múltiplos cabos simultaneamente, o que seria percebido bem cedo, então praticamente impossível de se concretizar”, complementa.
“Adicionalmente precisamos considerar que isso iria impactar os russos talvez mais do que a gente. Eles são muito mais dependentes de acesso a internet do que nós, porque muito do nosso conteúdo está armazenado localmente. Se os russos fossem derrubar sistemas que afetam os principais hubs europeus, como em Frankfurt, Estocolmo ou Amsterdã, os quais eles são muito dependentes, as chances são de que isso prejudicaria tanto eles quanto qualquer um”, concluiu o analista.
O pesquisador Victor Veloso pontuou ainda que os russos poderiam tentar provocar um impacto nos ucranianos atacando os cabos submarinos que estão em sua própria jurisdição, e até mesmo na Crimeia, ocupada desde 2014.
“A Ucrânia teria dificuldade de ter acesso mais rápido à internet, mas eles não dependem única e exclusivamente desses cabos. Existem malhas terrestres também, com uma capacidade de transmissão muito menor, mas ainda assim você não conseguiria desligá-la completamente do mapa”, explica.