Cercos sob demanda, 15 mil filiados e braço político: como age o Invasão Zero, investigado após morte de líder indígena

Cercos sob demanda, 15 mil filiados e braço político: como age o Invasão Zero, investigado após morte de líder indígena

 

Criador de movimento antagonista ao MST diz que 'intenção não é brincar de gato e rato'. Cacique Nailton Pataxó relembra assassinato da irmã e reage: 'Mentirosos'

Porto Velho, RO - O método segue a cartilha distribuída aos integrantes do movimento: o fazendeiro que desconfiar de uma invasão deve buscar o máximo de informações sobre a ocupação, como o número de pessoas, a identificação dos responsáveis, se há pessoas armadas, crianças, mulheres, e coletar imagens aéreas por drone. Em seguida, entrar em contato com um dos administradores do grupo, que convoca por WhatsApp o maior número possível de pessoas para pressionar pela desocupação. Ou impedi-la, se ela ainda estiver apenas na fase do planejamento.

É como atua o Invasão Zero, grupo criado há pouco menos de um ano que ficou mais conhecido ao se envolver em um conflito no Sul da Bahia, onde nasceu o movimento, que terminou com a morte da líder indígena pataxó hã hã hãe Maria de Fátima Muniz de Andrade, conhecida como Nega Pataxó. A morte de Maria de Fátima, que é investigada pela Polícia Federal, pôs em xeque o discurso de que as ações do movimento são pacíficas.





O Invasão Zero conta com 15 mil associados em “dez ou doze estados”, segundo o produtor rural Luiz Uaquim, de 63 anos, ex-presidente do PTB de Ilhéus e hoje sem partido. Uaquim fundou o movimento com Dida Souza, de 69 anos, empresária e funcionária do Tribunal de Contas da Bahia filiada ao PL-BA, filha do ex-deputado estadual baiano Osvaldo Souza, agropecuarista morto em 2012. .

O movimento admite participação na mobilização ocorrida no dia 21 janeiro, mas nega ter incentivado ou consentido com "qualquer ato de violência". Afirma ainda que seus membros não andam armados, ao contrário do que sugerem testemunhas.

— A convocação dos produtores rurais se deu a partir do pedido de socorro de um produtor que estava tendo sua propriedade invadida por um grupo fortemente armado, com armas de alto calibre e encapuzados — afirma Uaquim, em versão que se opõe à dos indígenas. 

— Os produtores começaram a se mobilizar no WhatsApp, e não foi só através do movimento Invasão Zero. Se organizaram nos grupos de outras associações também. Nós compartilhamos a convocação, pedindo para que as pessoas comparecessem de forma ordeira, pacífica e segura para socorrer aquele proprietário.

Sobre o conflito que terminou com a morte da liderança indígena, ele acrescenta:

— Quando chegou a notícia, nós reagimos com sentimento de dor e lamentamos profundamente o conflito ter chegado a esse ponto. Infelizmente, um garoto de 19 anos, motivado não sei pelo quê, reagiu àquela ação deles e ocorreu a fatalidade. Já falamos com a PF e estamos à disposição dos órgãos investigativos para que a gente venha buscar uma solução pacífica nessa região da Bahia. Somos a favor de que investiguem a todos, num processo imparcial.

Após mobilização de fazendeiros, articulada pelo grupo Invasão Zero, dezenas de carros se juntaram na Ponte do Rio Pardo para a ação de “reintegração de posse” — Foto: Divulgação / Polícia Civil

A iniciativa procura se contrapor ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra. As reintegrações são organizadas sem que se espere por ordens judiciais, mas com o apoio do recurso do desforço imediato. Previsto no Código Civil, ele autoriza o proprietário da terra invadida a mantê-la ou restituí-la com as próprias forças, desde que seja logo após a ocupação. O proprietário deve estar presente, com representante legal, e não pode apelar para violência.

O grupo nasce no contexto de sua primeira ação articulada: um cerco a supostos integrantes do MST entre março e abril do ano passado, na fazenda de Ouro Verde, em Santa Luzia (BA), ação que tem a veracidade contestada pelos Sem-Terra.

— Eles estavam com ônibus dizendo que estavam prendendo a gente, “um monte de bandido”, mas não tinha ninguém do MST lá — diz o diretor nacional do MST na Bahia, Evanildo Costa.



Expansão

O Invasão Zero se espalhou, inclusive, para outros estados, como Pernambuco, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Rondônia, Tocantins, Pará, Espírito Santo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul — "cada um tem seu CNPJ, eles criam seus movimentos baseados no nosso conceito que viralizou", afirma Uaquim — e inspirou também a criação de uma frente parlamentar, também de mesmo nome, apadrinhada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro. Afirmam já ter articulado dez ações de reintegração na Bahia, e citam a Polícia Militar como aliada nessas incursões.

— O movimento já fez várias ações de forma pacífica e ordeira com a presença da PM e sempre houve acordo com invasores do MST e indígenas, e nunca houve registro de conflito com qualquer tipo de invasor, todos foram resolvidos de forma pacífica — afirma o líder do Invasão Zero. — A mobilização junto com a PM é feita da forma mais simples possível: você tem um crime acontecendo, comunica e solicita a presença da polícia. Eles estavam lá com a gente no mês passado.

Ex-presidente Jair Bolsonaro (à esquerda) presente ao lançamento da frente 'Invasão Zero', em outubro — Foto: Ascom FAEP/SENAR-PR

Em nota, a PM-BA afirma que sua atuação nesses casos se dá "de acordo com protocolos e normas legais" e que "a razoabilidade e proporcionalidade da ação policial são observadas em todas as fases dos processos de reintegração de posse em que a corporação é acionada pela justiça".

A corporação acrescenta ainda que os conflitos fundiários iminentes ou já iniciados são acompanhados "com o objetivo de assegurar a preservação da ordem pública e a incolumidade de todos os envolvidos" e que "quaisquer medidas diferentes da legalidade são atos isolados e as condutas atribuídas aos policiais militares, de serviço ou em momento de folga, são devidamente investigadas pela Corregedoria, bem como pelo Ministério Público".

A PM revela ainda que, após a morte de Nega Pataxó, uma equipe da Corregedoria foi à região, onde ouviu pessoas que denunciavam ações ilegais de policiais militares na ação e investigações foram abertas. 

"A instituição mantém equipes no local desde o ocorrido, intensificando rondas ostensivas tanto na região conflituosa quanto na do hospital para o qual os feridos foram levados, a fim de garantir a segurança e a incolumidade de todos. A corporação manifesta solidariedade para com os familiares da vítima e reafirma que, além de não coadunar com ilegalidades, sempre está cumprindo sua missão constitucional", conclui.

Nega Pataxó foi assassinada durante conflito armado organizado por fazendeiros no Sul da Bahia — Foto: Reprodução

'Milícia rural', define líder do MST

Diretor nacional do MST na Bahia, Evanildo Costa dá uma versão sobre a atuação do Invasão Zero que contrasta ao que diz o líder, Uaquim. Ele define o grupo como uma "milícia rural" e pondera que, apesar de ter passado a ter nome e CNPJ no ano passado, o movimento já vinha atuando por meio das mesmas pessoas já há algum tempo. Segundo ele, os cercos com carros, o uso de armas de fogo e a cooptação de comerciantes, policiais e até de membros de assentamentos, fazem parte da rotina do grupo — assim como a disseminação de notícias falsas.

— Acompanhei daqui todo o processo de criação dessa organização criminosa por parte desses fazendeiros, envolvendo policiais e políticos, a partir do governo Bolsonaro. Eles começaram disparando fake news contra movimentos sociais do Extremo-Sul da Bahia, criminalizando o MST, indígenas e quilombolas, e depois começaram a agir. Várias pessoas acabaram mortas desde então — afirma Evanildo.

— Eles começaram a se organizar num lugar chamado Casarão Brasil, em Teixeira de Freitas. Além de fazendeiros e comerciantes, já cooptavam seguranças armados de lojas da cidade, pessoas de dentro das próprias comunidades de assentamento, e prometiam até dividir lotes com eles para que cometessem delitos contra os próprios povos.

Evanildo garante que os membros do grupo e seus seguidores participam armados das ações de reintegração de posse, às quais define como ilegais, e atribui a essas mesmas pessoas, também, um episódio ocorrido em 2021, no município de Prado, em que 20 homens armados surpreenderam membros do MST no assentamento Fábio Henrique. Na ocasião, veículos foram incendiados e integrantes do movimento foram feitos reféns. "Foram fortemente armados, camuflados e encapuzados".

Ele critica ainda uma suposta passividade da polícia em relação à ação armada do grupo.

— Eles se organizaram agora para essas ações de reintegração de posse de forma clandestina, com anúncios em grupos de WhatsApp com fazendeiros, empresários e políticos. E a PM da Bahia acompanha esses episódios, até porque a gente também denuncia e pede para que eles estejam presentes. Mas em nenhuma ação eles fizeram abordagens para identificar armas e a gente sabia e avisava que eles estavam extremamente armados. 

Só nesse conflito com os indígenas, em que eles sacaram as armas e acabaram assassinando a Nega Pataxó, que eles deram voz de prisão para o filho de fazendeiro e o PM reformado. Só a partir daí, também, que o estado passou a entender a gravidade por trás desse grupo e abriram investigação para apurar essa facção criminosa responsável por criar uma milícia rural aqui na Bahia e que está servindo de laboratório para expansão em vários outros estados. E eles se gabam disso.

A responsabilidade do grupo é investigada pela Polícia Federal, que diz que, por enquanto, não irá comentar o inquérito em andamento. Um jovem de 19 anos, filho de fazendeiros de família ligada ao movimento, foi preso por ter disparado o tiro fatal. 

No início do mês, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) protocolou uma notícia-crime pedindo para que o grupo responda por organização criminosa, incitação ao crime e homicídio qualificado, enquanto o Ministério Público Federal, que não comenta mais o inquérito por estar sob sigilo, chegou a falar em milícia armada com participação de policiais militares.

'Está sendo muito difícil', desabafa cacique

Ainda se recuperando do tiro que o atingiu no quadril e perfurou um rim no conflito, o cacique Nailton Muniz Pataxó, de 77 anos, irmão de Nega Pataxó, acusa o Invasão Zero de ter se aliado à PM para atacar os indígenas. Nailton conta que dois dias depois da ocupação, enquanto mostrava a policiais que foram à fazenda um mapa mostrando que ela ficava em uma antiga terra indígena, surgiram “várias caminhonetes” do grupo.

— É mentira deles. Há várias fotos de tudo o que aconteceu. Não tinha ninguém encapuzado. Nós não fazemos retomadas encapuzados, fazemos pintados. E todo mundo estava desarmado, só de arco e flecha, lança e borduna. Tanto que nenhum deles foi baleado — contesta o cacique.

Cacique Nailton Pataxó, irmão da Nega Pataxó, assassinada durante conflito de terra na Bahia — Foto: Reprodução / Rede social

Nailton afirma que os indígenas já vinham sofrendo perseguições do Invasão Zero bem antes do conflito que acabou com a morte trágica de sua irmã.

— Eu já tinha ouvido falar neles, porque no extremo Sul eles fizeram muito esses cercos, como por exemplo quando os indígenas ocuparam a fazenda Nova Brasília. Quem tirou os sem-terra de Santa Luzia também foi o grupo Invasão Zero. Eles são um grupo muito perigoso, muito violento e têm apoio da polícia. Quem levou os fazendeiros lá foi a polícia.

O cacique narra que os indígenas começaram a ocupação na Fazenda Inhuma durante a madrugada de sexta para sábado. Já no sábado, policiais militares teriam ido ao local e agredido indígenas, segundo seu relato. No domingo, ele conta que foi até lá para entender o que havia acontecido, e acabou surpreendido pela chegada de cerca de dez viaturas da PM.

— Os policiais me perguntaram se eu tinha algum documento que justificasse a nossa presença ali naquela área. Eu mostrei o mapa de Varadouro Vasconcelos (área reivindicada pelos indígenas há décadas e que acabou não sendo contemplada pela demarcação da T.I). Aí começaram a surgir várias caminhonetes, umas 60. 

Aí pedi para os policiais mediarem aquilo, porque nós não tínhamos condições de receber fazendeiros. Eles já estavam a uns 30 metros de distância da gente. Aí a polícia atirou para cima, depois para o chão, depois na direção dos índios... os fazendeiros batendo de pau, quebrando pessoas, começou um tumulto enorme. Com aquela confusão toda, lembro de ter falado: "comandante, você pode evitar uma coisa maior, um problema maior" e ele não me respondia.

Mais do que não responder a seu apelo, cacique Nailton afirma que o policial passou a bater em indígenas que estavam perto dele, incluindo sua filha. Ele afirma que foi nesse momento em que ele e a irmã correram para socorrê-la e acabaram baleados.

— Eu fui para tirar a minha filha e a minha irmã me acompanhou. Eles atiraram na minha irmã e ela caiu. Quando eu fui pegar a minha irmã, eles atiraram em mim e nós caímos juntos — conta. — Não prestaram socorro... e nisso os fazendeiros continuaram lá batendo nos índios. Só depois, quando eles foram embora, dois rapazes apareceram e falaram "nós vamos salvar o senhor, o senhor aceita a ajuda?". Pegaram a gente e levaram na caçamba na caminhonete até o hospital em Potiraguá. Na estrada a minha irmã já morreu.

Nailton foi atingido no quadril, enquanto Nega Pataxó foi baleada na barriga. Ele desabafa sobre a tristeza de não ter mais a irmã, companheira de luta, ao lado.

— Está sendo muito difícil. Ela era uma das nossas oradoras, fazia parte da pajelança. Ela sempre esteve junto com a gente nos rituais, sempre foi uma grande conselheira e está fazendo uma grande falta. A gente fica triste, porque a gente não vê a justiça se movimentar para tomar as devidas providências em relação a tudo o que aconteceu... depois de tudo isso, nosso povo passou a receber ameaças, represálias, que são constantes. O pessoal não está podendo nem ir na rua.

'Eles têm força política e poder financeiro'

De acordo com último relatório da Comissão Pastoral da Terra, a Bahia foi o estado que mais registrou conflitos por terra no país em 2022: 179, seguida de Maranhão (178), Pará (175), Amazonas (152) e Mato Grosso (147). O defensor público federal Gabriel Cesar explica o contexto da reivindicação do povo indígena Pataxó Hã Hã Hãe em relação à área em que ocorreu o conflito. Ela fica bem próxima a um território que é demarcado.

— Essa é uma área contígua à Terra Indígena Caramuru-Paraguassu, que é demarcada já há algum tempo. Mas essa área é de ocupação tradicional e é reivindicada pelos indígenas já há muito tempo, desde a década de 1970. E é uma área estratégica para eles, porque possui recurso hídrico, acesso a um rio, e eles têm esse problema grande de abastecimento de água no território demarcado. Enquanto os fazendeiros têm água abundante, eles precisam comprar água muitas vezes.

Ele comenta sobre o que já observou sobre a atuação do grupo Invasão Zero e compara a suposta anuência da Polícia Militar com a tentativa de golpe em Brasília, no 8 de janeiro.

– Nós já pedimos para que esses grupos sejam investigados. Não apenas por ações como a que terminou com a morte da liderança indígena, mas em relação à própria constituição de um grupo com esse objetivo. Se isso configuraria algum tipo de organização criminosa, já que eles têm uma finalidade, na minha opinião, que é criminosa, violenta. Já houve algumas ações atribuídas ao Invasão Zero, inclusive contra o MST. Mas a novidade é essa articulação e um suposto auxílio da polícia. A gente ouve relatos de que há PMs que vêm facilitando as ações desses grupos. É algo semelhante ao 8 de janeiro.

Questionado sobre o comportamento da PM, o especialista analisa que há uma desconfiança grande sobre "parcialidade" dos policiais junto a esses movimentos.

– Causa estranhamento, até porque nós temos relatos de envolvimentos de PMs que fazem a segurança e escolta de fazendeiros, assim como policiais que foram presos por envolvimento na morte de indígenas na região mais ao Sul. Então, há uma desconfiança, sim, muito grande, de parcialidade da polícia local. É preocupante e os relatos são de que eles não acompanharam apenas, mas facilitaram a ação do Invasão Zero.

Ele também contesta a afirmação das lideranças do Invasão Zero de que os indígenas estavam "encapuzados e armados".

– Me parece uma narrativa completamente inverossímil. Não houve apreensão de nenhum armamento pesado com os indígenas e nenhum fazendeiro foi baleado. Teve um atingido por uma flecha. Me parece estranho que diante de um ataque eles tenham reagido com flecha ao invés do suposto armamento pesado. Não faz sentido.

Por fim, Gabriel Cesar comenta a participação política do grupo.

– Eles têm uma força política, um poder financeiro e a gente sabe que isso pode ser decisivo para que haja criminalização ou não do movimento. A gente tem um sistema penal que é seletivo e isso é um dificultador. Houve uma conduta criminosa que precisa ser responsabilizada. Mas talvez não seja por conta desse poder político e financeiro que eles detêm – conclui.


Fonte: GLOBO
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